27.4.08

Todos morreram, pensaste,

e o pranto surgiu de costas para a vida no tempo em que ainda não se inventavam as cidades. Sobre o rio onde se criou a espiga, viste aquela barca que nunca chegou ao porto e da qual se ouvia a queda da terra.
Aproxima-te das margens desse rio, e poderás ver o desconhecimento do teu rosto.
Escuta, envia o teu nome como um voo triste, retoma o caminho do deserto, espera novamente sobre a terra que foi coberta de sal, os corvos vigiam o silêncio e algures a água é doce e guarda o som da infância. Conhecerás outra noite mais certeira onde se adivinha o roçar pausado do destino e a beleza se torna quebrável.

Uma vez tiveste um sonho. Era quando se desfaziam as tardes sob o dorso dos naufrágios, por alguma razão que não compreendias tudo estava aí, bastava desejar as coisas para existirem, a exaltação da terra na amplitude do teu braço e a vontade dos seres vivos no rasgão da tua boca. Tu, que começaste a procurar o encontro por capricho, existias precisamente quando doía a respiração.

Depois veio a história da névoa que saía da fotografia e a fotografia estava numa casa com um quarto que dava para o rio…
Antes do sonho já sabias do sonho, foi um pouco antes de chegares a ti, o dia mostrava a cor das folhas sobre as árvores e foi talvez nesse dia de Outono em que se antecipava a velhice das coisas que as foste nomeando uma por uma…ainda agora o sonho te acorda e o mundo continua a ser de confiança como o cheiro da laranja.

Ouve, o mar veste a inquietude da terra.


Já não és as tuas palavras, nem a escrita nem a distância entre ambos. Lá fora o sol, a tarde calma.

Cá dentro a tua cabeça sobre a pausa, o poço, o sangue desconhecido, a bofetada da água.

Um estorninho passa pelo buraco da terra, semeia de folhas a pena que cai sobre as tuas roupas e a música da aldeia ouve-se como se fosse domingo, mas é o domingo de outro dia e um cavalo brinca diante de ti exactamente onde mais tarde chega a lua e observa as tuas mãos brancas porque te tinhas esquecido delas.

A lua extingue-se suavemente e não chegarás a casa, estarão à tua espera com os dedos consternados e o olhar na direcção do desespero e da frase dos aflitos.

Este é o vale, não há outro para lá das colinas e apesar de tudo sentes a melancolia da morte.

Debaixo da árvore ficou a tua primeira e única recordação, o campo é desmembrado suavemente com uma chuva demorada e no teu apaziguado pranto descansa o último dos bens que te faltava recuperar, este é o ar, aberto e dilacerado, a dourada esquírola oferecida pelo sopro do esquecimento, mas apesar de tudo reconhece-lo e é demasiado tarde para te pôr de sobreaviso, mas não é isso que sempre se procurou? Acaso não ambicionavas a certeza? Volta a chuva atrás dos teus olhos, a primeira chuva. Esta é a canção do poço e ninguém pode dizer o contrário, esta é a tua palavra.

Algures nasce o mar, as vozes que estão dentro da tua cabeça foram conhecer o som da noite.
E o teu sorriso cai de soslaio para Este…



Oliverio Mácias Álvarez, Um Mundo Estranho (excertos)
(tradução de José Agostinho Baptista)
Fotografias de Rooze e Fee

30.11.07

sorrow, de saskia


fecha-se a noite, e a espera é a pedra que me afaga os passos…


Livro de Horas, de Saskia

13.11.07

Saskia, e de Sorrow

Daqui nenhuma palavra que me leve, nenhuma esperança em quem nos viu. Havia uma tela em lugar claro da sala, e por lá fomos passando. Ainda lá dormimos, se se nos demorarem um pouco mais, mas tão pouco...há um livro aberto e nós estamos lá para o fim. Receio que Ekat se te regresse por mar...mas é noite e é muito tarde, os portos falam silêncio adentro, uma vez e outra. É tão tarde, é tão escuro...
Sorrow, Ale Laisuma

9.11.07

chijimi I

…o aroma de amêndoa, passado que continua a regressar. O poema, como o chijimi, cântigo inicial tecido por mãos frágeis. O poema, caminho para destinos diversos, janela aberta sobre os lugares do mundo, espécie de memória guardiã de uma secreta eternidade. Saskia, os olhos a doerem-lhe de tanto percorrerem as palavras no sentido inverso do tempo, interrogação pousada no espaço desmaiado das folhas: o livro de Ale Laisuma e Sorrow tecendo memórias de Saskia. Outrora, uma outra Saskia, desfazendo na neve os passos magoados das planícies em sangue. É na neve que o fio é fiado e na neve, que ele se vai tecendo. É a neve que lava e branqueia o tecido. Todo o fabrico começa e acaba na neve.
“ A minha vida debruçara-se longamente na alegria breve dos dias e eles roubaram-me a ternura. Hoje, a saudade aquieta-se nas sombras e já não sei se é saudade ou letargia. Ouço uma vertiginosa canção e penso que é o mar, a maré dançando na orla dos rochedos. Dizem que o mar devolve tudo o que leva, mas paira nos meus olhos o desespero de naufrágos. O teu rosto, Sorrow, o teu rosto está sempre entre os navios que partem.”
E no entanto, todo o amor da mulher da Terra de Neve se desvaneceria com ela, não deixando neste mundo um sinal tão seguro como um tecido de chijimi…assim pensava Shimamura, meditando distraidamente na inconstância das intimidades entre os humanos, a sua efémera duração, que nem mesmo conhecia o tempo de existência de um bocado de tecido
Então é isso, paga-se sempre um preço. Por acreditarmos. A dualidade dos afectos, a efemeridade dos afectos. Assustava-a descobrir essa consciência. Dentro do quarto, no espaço tépido da melancolia…



yasunari kawabata, Terras de Neve (excertos a itálico)

foto de akif hakan celebi


19.6.07

chijimi


Quando as folhas começam a cair com os ventos duros e frios, na Terra de Neve, os dias não são mais que uma pintura de tonalidade cinzenta, nebulosa e gelada. Sente-se que a neve anda no ar. O círculo das montanhas em redor surge agora branco, com as primeiras neves…

…a voz de Shimamura como um sopro de vento respira na vidraça. Saskia percorre o embaciado ainda tépido, desenha linhas e pensa sonhos. A paisagem olha-a de fora, esse olhar frio assegura mais forte a fuga a prende-la ao centro do quarto, às imagens cantadas pelos dedos. Afasta-se da janela, o presente a esbater-se contra as paredes, debruça-se sobre a folha. O poema respira entre a maciez da pele e o aroma de amêndoa…



gravura de Ando Hiroshige, yui (série as estações de Tokaido)

Yasunari Kawabata, Terra de Neve (excerto)

14.5.07

teus olhos impacientes e irrealizáveis...

claude monet
(...)
já não conheço o caminho para o tempo antigo. abro as mãos e as palavras revelam-me mortíferos mistérios.
Saskia e as memórias. deixou-as cair no regaço e olhou a tela. suavemente, os versos formaram-se nos lábios vazios: pela neve sem rasto/caminhou/aquele que busca um amor. o poeta, preenchendo a incerteza dos passos.



(título e excerto, José Tolentino Mendonça)

26.3.07

Erase all the memories


Kasimir Malevitch



Saskia partira sabendo Sorrow desabitando a visão da charneca sangrenta. Caminhava para norte – o voo de aves azulíneas dissera-lhe da cidade branca onde começavam os grandes frios, onde espadas feitas neve apaziguavam a mancha vermelha das casas – nos olhos guardara as margens amanhecidas de flores lilases colhidas em tempo longo, flores raras nas mãos de Sorrow. Foi tempo de morrer, dissera-lhe o último companheiro de Sorrow e Saskia partira, na memória sons incendiados do tropel de cavalos rasgando o horizonte.
Lembrava-se bem desse tempo. caminhara como se os passos conseguissem habitar a ausência mas todos os caminhos se fechavam nesse frio imenso onde repousara a inocência. Sabia que não poderia regressar ainda que os ventos lhe trouxessem rumores dos lugares abandonados e da beleza dos campos de trigo.

Pousado o livro na desabrigada recordação dessa tarde, Saskia lia. Mas Saskia não lia, os signos fechavam-se aos seus olhos, os dedos teciam vozes soltas sobre as páginas brancas E a neve tomando conta de tudo...